quarta-feira, 25 de julho de 2012

Então, guris. Oi. Logo volto pra cá. Lembro do meu tio Cláudio, aquele de quem vocês ouvem às vezes falar, chorando na sala da nossa casa, na Capitão Felino Alves número 37. 37? Eu perguntei por que tu tá chorando tio, e ele disse que um dia eu iria entender. Acho que entendo um pouco agora. Embora as coisas sejam diferentes. Tomara que tudo melhore. Espero que um dia vocês me entendam.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

O mui misterioso dom de um guri apelidado Pã

Francisco é um gurizinho de cinco anos, curioso, canhoto, obstinado e passional. Francisco tem várias habilidades, como escalar paredes, dançar como um bailarino da Pina Baush ou fazer perfeitos aviõezinhos de papel. Francisco está sempre demandando atenção. Quer papo, comida, colo, suco, chá e, principalmente, quer que alguém olhe suas incríveis façanhas. De preferência, que olhe e continue olhando infinitamente o incrível salto, o maravilhoso golpe de kung fu, o giro fantástico, a força do chute. Francisco também pede tudo o que vê, mas não faz escândalo por não ganhar quase nada do que pede e logo esquece. Francisco, tal como sua mãe e sua bisavó Alice, tem surtos de um tipo de coceira nas costas que só pode ser aliviada se um outro coçar (e dessa forma, por entender profundamente do que se trata esse tipo de coceira ainda não estudado pela ciência, já está se tornando o melhor coçador da casa). E, para não ficar só nas gracinhas ou mimosices, devo dizer que ele sabe como ninguém ser chato, implicante e exigente. Atormentar o irmão José está entre suas maiores diversões.

Porém, dentre tudo isso, o gurizinho possui um dom - só posso chamar assim - absolutamente inexplicável. Um dom que não podemos rastrear geneticamente como a coceira, o canhotismo ou a implicância. Um dom quase sobrenatural que, entretanto, possui caminho só de ida. Já me explico.

Francisco tem o incrível poder de fazer sumir, para todo o sempre, um pé de seus sapatos. Sejam tênis, sandálias, chinelos ou galochas, de repente, num belo dia em que precisamos deles e vamos buscá-los, eis que só há um pé. Daí lança-se toda a família numa busca desesperada (às vezes há urgência no sapato), mutirões se formam, e tenho que ser justa dizendo que ele participa da empreitada. Então, lá estamos nós deitados no chão a ver de baixo das camas e armários, a subir em bancos - já que altura nunca foi um obstáculo para o Pã -, a remexer em brinquedos, em arbustos, em cestos de roupas. Como sempre, nada encontramos (bem, de vez em quando encontramos outras coisas perdidas, mas isso não vem ao caso).

No início, há mais ou menos um ano e meio atrás, quando o dom começou a se manifestar, eu tive dificuldade de aceitar. Ficava obstinada na busca, não podia crer que um sapato simplesmente se desmaterializasse. Tirava tudo de armários, usava lanternas para verificar naqueles buracos escuros que toda casa tem. E, claro, ficava furiosa. Sempre em vão. Sempre em vão.

Agora, por exemplo, ele tem um par de chinelos, só que ambos do mesmo pé. Um do homem aranha e outro todo preto. Em circunstâncias extremas ele usa assim. Mas como o que gosta mesmo é andar descalço, para ele tá tudo bem. O problema são aquelas situações em que a pessoa precisa estar calçada, como ao sair de casa, por exemplo. Então, eu e o Rodrigo tivemos uma ideia que está funcionando, embora seja um pouco cruel.

Há três meses o Francisco possui apenas um par de tênis. Este deve ser usado para tudo o que aconteça fora de casa: escola, passeios, festinhas. Quando o mesmo fica quase imprestável, a ponto de não ser mais possível sair com ele, é substituído por um novo que cumprirá a função social, enquanto o antigo fica para ser usado em casa (até que um pé desapareça). Estamos no terceiro par, comprado ontem, e cada par dura um mês nos pés do Pã. Exatamente.

O tênis anterior deve estar horroroso, realmente impossível de usar, pois só assim, com o guri sabendo que caso ele permita a manifestação do dom no novo ele não terá sapatos para sair de casa, a coisa funciona. Dá pena, principalmente no final do mês e do tênis. Mas sabemos que se por ventura a compra do segundo par se der antes de ter que aposentar o primeiro, inevitavelmente um pé de algum dos pares desaparecerá, e pode ser que seja do novo. Tem funcionado.

Fico pensando como ele faz isso. Nem ele mesmo parece saber, é algo que foge do seu controle. Às vezes percebo nisso uma tendência à rebeldia, ao desapego, e acho bonito. Outras, acho que é puro relaxamento e fico irritada. Não raramente, tenho achado graça (às escondidas, claro), e penso que ele o faz deliberadamente, só para acrescentar um pouco de mistério e diversão nas nossas vidas. Não seria estranho vindo de Pã, não é mesmo?

Ultimamente tenho imaginado um dia que vai acontecer daqui há alguns anos. Eles já são adultos, não moram mais comigo e resolvem sozinhos às questões relativas aos seus sapatos. Eu e o Rodrigo estamos felizes, gozando novamente de alguma privacidade. Em um momento eu preciso pegar uma coisa qualquer e abro um armário qualquer. Então, subitamente, caem sobre mim centenas de pés de pequenos chinelos, galochas, tênis, sandálias. Eu vou me lembrar de cada um e de cada dia que perdemos (perdemos?) horas procurando-o. E vou escutar a gargalhada do meu Pã, e vou ver os olhinhos pretos debochados dele, e vou morrer de saudade.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

o que fica?

Fico pensando, em dias como hoje, especialmente, fico pensando do que eles vão lembrar. Dias em que sou mal-humorada, brava, impaciente, chata. Dias em que beiro a insanidade e que nada nada nada me agrada. Sou horrível, sou dura, não presto.

Que mãe lhes restará quando eu não estiver mais tão perto e não tiver mais tanta importância? Onde se agarrarão as lembranças? Nos risos, nos carinhos, nas danças, nas histórias? Ou nos gritos, na ausência, na má vontade para brincar?

E que vontade de apagar tudo e manter a minha aparência de mãe-maravilha! Mas não. Se é para vocês (e para mim) que escrevo, meus gurizinhos, não posso. A gente sabe.

Lembro que uma das primeiras sensações que eu tive, ao ter vocês, foi a de estar compreendendo os meus pais. Foi como se eu estivesse devolvendo para meus pais, através de vocês, o que eles fizeram por mim. E, olha, não é pouca coisa.

Não acho que só quem tem filhos pode entender isso, mas eu só entendi quando os tive. Assim tenho entendido, porque os filhos, mais do que um companheiro ou um amigo, sabem tudo da gente. E, ao contrário do companheiro ou amigo, não têm escolha. Eu sou a mãe deles. Ponto final. Lidem com isso. Lidemos.

Espero deixar pra vocês, menininhos, a vontade de serem felizes, a vontade de saber, o respeito pela diferença, a tolerância, a graça, a leveza nas relações, as possibilidades. E o perdão.

O perdão pelos erros que eu cometo, que eu cometo, e continuarei cometendo. Porque sou eu, porque sou assim. Talvez faça parte do pacote, meus amores, do pacote que lhes coube. Queria ser bem melhor, estar à altura desses dois coraçõezinhos, mas dizem, com razão, que os filhos superam os pais.

Vocês são a prova definitiva de que isso é a mais pura verdade.

sábado, 11 de junho de 2011

Cena miúda

Breve diálogo com meu filho Francisco, de cinco anos, no momento em que ele comia uns ovos mexidos, diretamente da panela, sentado no skate e derrubando a metade pelo chão:
Eu - meu filho, porque tu não comes na mesa, no prato, pra não fazer tanta sujeira?
Fran - porque não.
Eu - ai, filho, porque tu não podes me obedecer, ouvir mais o que eu peço e cuidar mais da nossa casa?
Fran - porque eu sou homem.

(morri)

sábado, 21 de maio de 2011

Os dois cachorrinhos

A Penélope, cusca boxer mucho loca, foi, deliberadamente, nosso treino para ter filho. Morávamos num pequeno apartamento em Porto Alegre, na João Telles, e todos os gatos eram pardos e todas as noites muito longas. Decidimos que era hora de crescer e eu pedi pro guri (na época meu único) um cachorro, um boxer. TINHA que ser um boxer (pra resolver minha saudosa lembrança da infância, quando meu boxer,  o Falcão, foi doado porque fazia muita bagunça).

Pois meu guri leu uns anúncios no jornal e achou uns boxers em Canoas,  a gente não tinha carro e ele foi de ônibus e voltou com a Pê recém nascida quase, no colo, de trensurb. Me deu. E eu e ela nos demos de simpatia óbvia e imediata.

Ele me perdeu por umas noites, em que eu dormia na sala com a mão na caixinha dela. E depois, entendemos porque tantas pessoas desistem dos boxers (assim como meus pais), pois ela roeu malas, sofás e livros. A Pedagogia da Autonomia, do Paulo Freire, ela comeu inteiro, só deixando mesmo a capa para nos lembrar que, talvez, tudo estivesse ficando claro.

(Há episódios incríveis, como num passeio na Redenção em que ela fugiu de mim e eu, cansada de chamar, me abaixei e chorei e fui consolada por uma ORDA de fumadores de crack, que deram um pause no seu consumo, se organizaram, e me trouxeram a cusca de volta, os queridos.)

Buenas, hoje a Pê tem nove anos, quase dez, um queixo meio esbranquiçado e um atiço que vai e vem. Mas tem um amigo, o Toby, vira-latas pelotense que há uns dez meses mora conosco. TÍPICO vira-latas, tirando os olhos azuis, oriundos, certamente, da nobreza canina da Princesa do Sul. E eis que tá rolando um romance.

Porque a Taylor (outro nome dela, não vou explicar), nunca transou. Nunca entrou no cio, nunca quis nenhum, nunca se esfregou em nenhuma perna.

E agora, já uma senhora, está num tal romance com Tobino, se impondo, se fazendo e emitindo sons que nunca antes ouvimos, dominando totalmente o jovem cão que, quase em sofreguidão lhe implora uma lambida, uma cheirada. É uma beleza de ver os dois. Amor, selvageria e romance, está tudo ali.

Estamos aguardando. Eu, o velho guri de todo esse tempo e os dois bacuris que já dormem agora, mas que foram inaugurados por essa velha cadela, que nos disse que é preciso paciência, espaço e bom humor pra cruzar esse tempo que se chama vida.

terça-feira, 3 de maio de 2011

A torre

O José precisa entender tudo. O José percebe tudo, não adianta querer disfarçar ou esconder. Tentamos, ainda, mantê-los afastados dessa realidade das tragédias e horrores. Conseguimos um pouco, na medida do possível, mas esse possível é cada vez menor. Ainda mais para o Zé, atento, curioso, sensível e preocupado com o mundo.

Pois a morte do Bin Laden é o assunto do momento. Eu e o Rodrigo nos indignamos um pouco demais com as coisas e não conseguimos deixar de comentar, e às vezes nos exaltamos e, bem, os gurizinhos estão sempre pela volta, por cima, por baixo, por todos os lados.

Daí explicar quem era o tal do homem, cuja morte causa comemorações ensandecidas lá na terra do Obama (esse ele conhece bem), os tais dos Estados Unidos da América, não foi muito fácil. "Mas como? Mas porque? Mas porque? Mas o que que ele fez?"

Resolvemos abreviar o assunto.
"Dizem, meu filho, parece que ele mesmo dizia, que foi ele quem mandou derrubar as Torres Gêmeas."
"Derrubaram a torre?"
"Sim, filho, antes de tu teres nascido."
"Como?"
"Bateram com um avião nelas."
"Ah, meu Deus, derrubaram a Torre de Pisa!"
(risos contidos, caso o contrário ele surta)
"Não, filho, essa ainda está lá, meio inclinada, mas de pé."
"Ufa! Ainda bem."

Encerrou-se o assunto. A Torre de Pisa, a que interessa pro José, permanece lá, firme e forte e torta, esperando a sua visita.